Revisão do texto literárioRevisão do texto literário

O texto literário por sua especificidade requer do revisor um domínio que vai além de um revisor de outras modalidades de textos. A produção de um texto literário é passível de receber revisões de linguagem e de estilo. Entretanto, o trabalho do revisor deve enfocar-se no tratamento de uma obra de arte em processo de composição. Sob essa perspectiva, o revisor torna-se uma espécie de leitor privilegiado da obra, ao mesmo tempo, um parceiro de escrita do autor, dialogando com esse, observando criticamente os aspectos intrínsecos da produção.

A tarefa de revisar um texto literário desloca o profissional da revisão para o território da crítica, uma vez que seu contato com a obra ocorre no primeiro estágio da criação, aquele em que o texto existe apenas para um número limitado de leitores, antes da publicação, ou antes mesmo de chegar à editora, onde passará por outros processos de leitura.

Não raramente os revisores convivem com a desconfiança de escritores que consideram que a obra literária não deve e não pode ser alterada em nenhuma hipótese.

A criação de um texto literário é um processo contínuo. A cada reedição pode sofrer alterações, conforme o desejo de seu autor ou editor, que muitas vezes conta com a contribuição de leitores. É nesse contexto que a intervenção do revisor também pode ser solicitada. Portanto, o primeiro propósito do revisor ao tomar a tarefa é o aprimoramento do texto em termos estéticos. Serão exigidas dele qualidades carregadas de subjetividade, como acuidade, perspicácia e sensibilidade.

Ao tratarmos da tarefa do revisor, refletiremos, especificamente, sobre a relação do revisor com o autor de um texto literário. Para que essa relação se efetive, é necessário considerar o revisor de um texto literário como um leitor contumaz. Como tal, trata-se de um sujeito possuidor de vasta experiência de leitura, com repertório próprio e concepção de valor literário, ciente de que o conceito de literatura é escorregadio, de convívio próximo com variados gêneros e estilos e, portanto, com grande percepção das possibilidades de uso das estratégias literárias.

Isso significa que o revisor de um texto literário não é exclusivamente um técnico que conhece as regras da escrita e modos de construir coerentemente um texto, ou que conhece os gêneros literários e sabe reconhecê-los e utilizá-los, mas é um leitor que convive com a literatura no sentido cultural e estético.

O revisor do texto literário tem um duplo movimento, constante no exercício de leitura, que é mergulhar no universo literário, entregando-se ao prazer e à emoção da leitura, e distanciar-se objetivamente desse universo, a fim de examinar com isenção profissional os efeitos que tal leitura produziria nos demais leitores. Portanto, a leitura do revisor crítico só é passível de se efetuar desse lugar sempre em movimento.

É nesse contexto que se pretende afirmar a importância da memória de leitura para um revisor literário. Trata-se de um investimento na memória do próprio texto, isto é, na mnemônica textual. Durante sua leitura, o revisor se depara com informações, alusões, citações diversas, visíveis ou sutis, que acionam sua memória, seu arquivo pessoal de leitura. Os intertextos podem também guardar equívocos de diversas ordens. O revisor perceberá o equívoco porque a leitura atenta proporcionou um encontro entre a sua memória e a memória do texto, por exemplo, do que ocorre quando se percebe, sem necessidade de consulta, o deslize no uso de datas.

Outro exemplo da lida com a memória do texto em revisão é o que se pode vivenciar na leitura de narrativas ficcionais compostas por um número significativo de personagens. Se, a certa altura da narrativa, um personagem desaparecer da trama, ou suas características iniciais tiverem sido alteradas sem que o texto tenha explicado, será preciso que o revisor perceba esse movimento e o aponte com comentário para o escritor.

Outro aspecto da memória do texto é o que se refere às escolhas recorrentes do escritor – a que se chama comumente de estilo. Para caracterizar o estilo de um escritor podemos considerar a sua criação pessoal em todo domínio da língua: aspectos da seleção vocabular, aspectos ligados à sintaxe, aspectos semânticos.

Para sistematizar como se dá a seleção vocabular do texto em revisão, o revisor vai: i) dirigir sua atenção ao material fônico utilizado pelo escritor; ii) tentar perceber as escolhas das palavras de acordo com sua carga afetiva; iii) perceber se o escritor aproxima suas escolhas dos valores socialmente convencionais ou se os subverte. Para reconhecer os aspectos ligados à sintaxe, o revisor pode sistematizar a preferência por algumas construções sintáticas específicas, o afastamento ou a aproximação das normas sintáticas vigentes, o uso de algumas figuras de construção frasal, tais como as inversões, as repetições, o pleonasmo. No campo semântico, o revisor pode se dedicar a perceber, por exemplo, os modos como o escritor escolhe o uso de figuras de linguagem, como a metáfora e a metonímia.

Por tudo isso, pode-se dizer que o revisor de um texto literário não vai se ater a retificar aspectos da pontuação, a sugerir uso de maiúsculas ou minúsculas, a verificar a compatibilidade de concordâncias nominais e verbais. Ele terá de levar em consideração os efeitos semânticos e sonoros que as sugestões apresentadas ao escritor terão sobre o texto. O revisor vai analisar o modo como os elementos poéticos ou narrativos estão organizados no texto. As propostas de ajustes devem ser pautadas pelas condições persuasivas de enunciação que estruturam a prática discursiva e que se manifestam por meio das vozes narrativas, dos diálogos, dos monólogos e apartes, do eu lírico, dos sujeitos que instauram o discurso no texto.

Para realizar essa tarefa o revisor deverá conhecer alguns elementos básicos de teoria da literatura e de funcionamento do texto literário como arte, criação e ficção.

O texto literário é uma arte e os valores estéticos mudam com o tempo. O ofício do revisor de um texto literário está continuamente em construção, exige uma formação constante. Ele precisa acompanhar as preferências estéticas de seu tempo, ou seja, atualizar-se. Dessa forma será possível dialogar de modo mais adequado e eficaz com o escritor.
 
REFERÊNCIA
 
PERPÉTUA, Elzira Divina; GUIMARÃES, Raquel Beatriz Junqueira. A revisão do texto literário: um trabalho de memória. Scripta, Belo Horizonte, v. 14, n. 26, p. 195-204, 1º sem. 2010.


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